Difal

O Difal no comércio eletrônico e a má formulação das políticas tributárias.

As questões pertinentes ao Difal no comércio eletrônico vêm movimentando diversas empresas no início desse ano. Porém, apesar dos diversos artigos e matérias já publicados sobre o tema, muitos contribuintes ainda não sabem como irão proceder em razão das incertezas existentes sobre o tema, sobretudo quanto ao início da eficácia da Lei Complementar nº 190/2022, se: 1) em 2023, em atenção ao princípio da anterioridade anual; 2) em abril de 2022, em respeito à anterioridade nonagesimal e ao próprio artigo 3º da LC 190; ou 3) desde janeiro de 2022, tal como vem sendo defendido por alguns estados, como o de Alagoas na Adin 7.070, recentemente proposta no STF.

Os conflitos sobre o tema se arrastam por mais de uma década, provocados pelas dificuldades impostas pela nova tecnologia (o comércio eletrônico) e por inúmeros equívocos cometidos pelos formuladores das políticas tributárias, que levaram o Judiciário a reconhecer a inconstitucionalidade — até o momento — das duas normas editadas para regular o Difal (o Protocolo ICMS nº 21/2011 e o Convênio ICMS nº 87/2015).

No meio desses conflitos, os contribuintes vêm atuando ao longo dos anos de maneira incessante para tentar manter regulares as suas obrigações fiscais, sobretudo em razão da possibilidade de terem suas mercadorias ilegalmente retidas em postos de fronteira.

O problema tem como origem a inércia do legislador e do governo central de compreender, ainda na primeira década deste século, que a estrutura do ICMS, instituído na década de 60, havia se tornado anacrônica ao estabelecer que, nas operações interestaduais envolvendo destinatários “não contribuintes”, o tributo seria devido exclusivamente ao estado de origem.

No século passado essa situação pouco afetava os estados de origem e de destino, na medida em que o contato do consumidor com o produto era físico, com a necessária ida do cliente ao varejista para a conhecer e adquirir a mercadoria. Nessa situação, a distribuição do produto necessariamente demandava a participação de um contribuinte varejista no local do consumidor (contribuinte do ICMS), garantindo a repartição das receitas tributárias nessas operações (o estado de origem ficava com o ICMS referente à operação interestadual realizada pelo produtor/atacadista e o estado de destino, com o ICMS referente à operação interna realizada pelo varejista ao consumidor final, com possibilidade de creditamento do ICMS incidente na operação antecedente).

Essa modalidade tradicional de comércio, no entanto, sofreu mudanças substanciais com o advento de novas tecnologias, sobretudo da internet, que possibilitaram que os consumidores pudessem conhecer e adquirir as mercadorias remotamente, interagindo diretamente com o varejista localizado em outra unidade da federação. Nesse novo contexto, uma mercadoria poderia ser comprada de um fornecedor em outro estado, sem que o estado de destino (domicílio do comprador) pudesse compartilhar dessa receita tributária.

Sem a atualização do ordenamento jurídico que absorvesse esse fenômeno e permitisse uma divisão mais equitativa do ICMS, alguns estados editaram o Protocolo ICMS 21/2011 estabelecendo regras próprias para garantir aos estados de destino parte do imposto incidente nessas operações.

A partir desse conflito entre estados, os contribuintes passaram a ter que lidar com um ambiente de grande insegurança jurídica, tendo suas operações impactadas pela instituição de normas em desacordo com o arcabouço legal. Essa discussão chega ao STF em 2015, quando a corte, no julgamento das Adins 4.628 e 4.713 e do RE 680.089, reconheceu a inconstitucionalidade do Protocolo ICMS 21/2011.

Em face dessa decisão do STF, e diante do constante aumento das operações de comércio eletrônico e da queda na arrecadação dos estados de destino (menos industrializados), o Congresso Nacional editou a Emenda Constitucional nº 87/2015 para dispor o seguinte: 1) aplica-se a alíquota do ICMS destinada às operações interestaduais inclusive em operações para não contribuintes do imposto; 2) a diferença entre a alíquota interna e a alíquota interestadual aplicável (Difal) passaria a ser devido ao estado de destino. Nas operações com não contribuintes do ICMS, caberia ao remetente (o estabelecimento comercial) a responsabilidade pelo recolhimento do imposto do estado de destino.

Apesar de a Constituição Federal prever que caberia à lei complementar dispor sobre normas gerais de Direito Tributário, os estados optaram por regulamentar a matéria por meio do Convênio ICMS 93/2015.

O STF foi chamado uma segunda vez para sanar as controvérsias envolvendo o comércio eletrônico, desta vez para examinar o vício de constitucionalidade do referido convênio. No julgamento da ADI 5.469 e do RE 1.287.019, o STF decidiu que “(A) cobrança do diferencial de alíquota alusiva ao ICMS, conforme introduzido pela emenda EC 87/2015, pressupõe a edição de lei complementar veiculando normas gerais”. Entretanto, em razão de questões orçamentárias levantadas durante o julgamento, a corte modulou efeitos à decisão, de forma que essa produzisse efeitos a partir de 2022.

Em nova tentativa de regulamentar a matéria, foi editada recentemente a controversa LC 190/2022.

Como adiantado acima, apesar de a norma ter sido sancionada apenas em 2022, de forma que sua vigência deveria ter início em 2023, em atenção ao princípio constitucional da anterioridade tributária, os estados sustentam o entendimento de que o Difal teria vigência imediata, dado que não teria ocorrido qualquer aumento da carga tributária, mas, sim, uma mera divisão do tributo incidente na venda, com a manutenção do status quo.

Quando se olha para o passado, portanto, observam-se inúmeros erros por parte dos formuladores das políticas tributárias: 1) inércia do constituinte derivado e do próprio governo para encaminhar tempestivamente alterações constitucionais que pudessem garantir melhor repartição de receitas tributárias para capturar as mudanças tecnológicas e sociais existentes; 2) dos governadores de estado, reunidos no Confaz, ao editarem o Protocolo ICMS 21/2011, em evidente violação à regra constitucional então vigente; 3) do Congresso Nacional, ao deixar de editar uma lei complementar para regular as alterações provenientes da EC 87/2015; e 4) dos governadores, ao editarem o Convênio ICMS 93/2015, novamente reunidos no Confaz, que dispunha de normais gerais de Direito Tributário, não obstante a sua ausência de competência constitucional para tanto.

Sucede que, ao se debruçar sobre a LC 190/2022, recém promulgada, vê-se que a má condução das políticas tributárias se mantém: 1) pelo Congresso Nacional, que analisou a matéria no apagar das luzes de 2021, apesar de o julgamento do STF ter ocorrido em fevereiro de 2021 e de o tribunal ter resguardado a arrecadação do ICMS em 2021, concluindo que a cobrança seria inconstitucional (por ausência de lei complementar) a partir de janeiro de 2022; 2) pela Presidência, que, apesar do texto da LC 190/2022 ter sido aprovado pelo Congresso e remetido à sanção do presidente da República ainda em 2021, este deixou de sancionar a norma ainda no exercício anterior à sua entrada em vigor; e 3) pelos estados, que editaram leis ignorando não apenas o princípio da anterioridade anual, como também o próprio artigo 3º da LC 190/2022, que determinava a observância do princípio da anterioridade nonagesimal.

Como consequência, é de se esperar que surja todo um novo contencioso sobre a matéria, que pode se estender por muitos anos e com impacto considerável para os contribuintes e os cofres públicos.

O descaso com contribuinte fica evidente quando se observa como se deu a aplicação do novo artigo 24-A da LC 87/96, introduzido pela LC 190/22, que dispõe que os estados deveriam disponibilizar um portal com acesso a todas as informações necessárias para auxiliar o contribuinte no adimplemento de suas obrigações tributárias, principais e acessórias.

Apesar de ser imprescindível aos contribuintes, o portal foi lançado às pressas no final de 2021 [1], não com o objetivo de informar e auxiliar o contribuinte, mas para afastar a regra do §4º do citado artigo, que dispõe que “(p)ara a adaptação tecnológica do contribuinte, o inciso II do § 2º do artigo 4º, a alínea ‘b’ do inciso V do caput do artigo 11 e o inciso XVI do caput do artigo 12 desta Lei Complementar somente produzirão efeito no primeiro dia útil do terceiro mês subsequente ao da disponibilização do portal de que trata o caput deste artigo”.

O portal, como pode ser facilmente observado, não passa de um apanhado de normas tributárias reproduzidas sem qualquer tratamento que auxilie o comerciante no cumprimento de suas obrigações tributárias. Não foram introduzidas ferramentas elementares como filtros que permitissem segregar informações de acordo com o estado de destino ou mercadoria comercializada. Pior, parte dos campos faz mera referência cruzada a outras normas, muitas das quais editadas ainda durante a vigência do Convênio nº 87/2015.

O que o histórico acima aponta é que em nenhum momento da formulação dessas políticas tributárias o contribuinte foi inserido no centro do debate. Muito pelo contrário, os formuladores das políticas tributárias pertinentes ao Difal, especialmente os governadores, demonstram reiteradas vezes que a única preocupação é com a alegada necessidade de manutenção e/ou majoração da arrecadação, ainda que para isso seja necessário ignorar qualquer princípio previsto na Constituição Federal.

Victor Hugo Nascimento é sócio do Schmidt, Valois, Miranda, Ferreira & Agel Advogados.

João Agripino Maia é sócio do Schmidt, Valois, Miranda, Ferreira & Agel Advogados.

Rodrigo Pinheiro é sócio do Schmidt, Valois, Miranda, Ferreira & Agel Advogados.

Veja mais detalhes em: https://www.conjur.com.br/2022-fev-10/opiniao-difal-ma-formulacao-politicas-tributarias

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